Desembargador Silvio Vericundo Fernandes Dias


DESEMBARGADOR SILVIO VERICUNDO FERNANDES DIAS

Por desembargador Robson Marques Cury

Sempre amigos, eu e Silvio, viajantes inveterados, apreciávamos as férias no litoral, ele tinha especial predileção pela sua modesta casa em São Francisco do Sul-SC e a considerava patrimônio familiar. Jogou futebol e gostava de motocicletas e de remar caiaque no rio e no mar. Exímio tocador de violão e apreciador de todos os gêneros de música, sempre dizia que a música promove a paz, citando John Lennon. 

A esposa, Luzia, que era professora, e as três filhas sempre o acompanharam nas comarcas onde trabalhou. Sua filha caçula recebeu o nome Mariana em homenagem à cidade de Santa Mariana onde judicava. 

Em expressivo depoimento para a “História do Judiciário”, entrevistado pela jornalista Daniele Dumas do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), contou passagens marcantes da sua vida, carreira e visão do planeta. Na versão escrita a seguir tentei ser o mais fiel possível à emoção da narrativa do querido Silvio. 

 

Os primeiros livros que leu foram: Robinson Crusoe de Daniel Defoe e O Guarani de José de Alencar. Apreciador de leitura, incentivado pelo pai. Nada como ler e imaginar. Analisa o livro como um mundo à parte, basta ter imaginação. Relembrou uma questão de prova na Universidade Federal concernente à análise do vento pelo escritor Eça de Queiroz: “Pareceu ao lenhador ouvir o som de um choro distante e uma voz bradando aflita”. 

Começou a trabalhar como escrivão de polícia e depois montou banca de advocacia em Ibiporã e também lecionou em colégio local. 

Atendendo aos clientes percebeu que podia fazer o bem para as pessoas, e resolveu ingressar na magistratura para resolver os problemas dos cidadãos, praticando bem para expressiva parcela da sociedade. 

Estudou com afinco e foi aprovado nos dois concursos: para juiz adjunto, hoje juiz substituto, e para juiz de direito. E a sua experiência profissional ajudou muito, inclusive atuou como advogado nas varas que funcionavam no prédio onde hoje está instalado o Palácio da Justiça no Centro Cívico da capital. 

Iniciou como juiz adjunto na seção judiciária de Irati. Sempre muito ligado à família, relembra a alegria e as gargalhadas da filha mais velha, ainda bebê, maravilhada com os movimentos do “joão  bobo”, brinquedo de sucesso naquela época. 

Adepto e defensor da tecnologia, entende que propicia a economia de tempo que é o nosso maior capital. Sempre utilizou o WhatsApp e o Projudi. Analisa a positiva evolução das máquinas de escrever para o computador. Considera segura a urna eletrônica pela sua experiência como juiz eleitoral. Adepto dos carros elétricos pela energia limpa e economia, preservando o combustível fóssil. Defensor do meio ambiente e do planeta. 

Rememora as dificuldades da comarca de Palmital, onde só havia um telefone na central da cidade, sendo necessário falar alto e até gritar para ser ouvido, e as conversas eram ouvidas à distância, sem qualquer privacidade. Quando chovia andava com as rodas do seu veículo acorrentadas devido às ruas de terra. Ao ser promovido para outra comarca, o dono do posto onde abastecia o agradeceu por ter trazido a lei e a ordem, pois anteriormente o que valia era a faca e o revólver na cintura, e as condenações nas ações penais acarretaram a mudança de mentalidade na população. 

Importante é a sua visão da vida. Sem dar tanto valor aos bens materiais. Certa feita uma pessoa mostrou o filho adulto e trabalhador, agradecendo por ter conferido a guarda da criança. Enfatiza que o mais importante é o bem que faz na sua profissão. É o que lhe traz felicidade. (História do Judiciário, 27-01-2020, YouTube). 

 

Perfeito o comentário no YouTube do nosso colega Noeval de Quadros: “Um magistrado exemplar. Ele disse na entrevista que ‘o que se tem, se esgota, cansa, não preenche; mas o bem que se faz, esse permanece, se espraia’. E foi isso mesmo que ele fez na sua vida de juiz. Elegante, discreto, benevolente e correto. Silvio é exemplo para todos nós!”  

 

A filha Ana Carolina lembra que seu pai era advogado em Ibiporã quando nasceu no ano de 1978 em maternidade de Londrina. As suas irmãs Mariana e Claudia nasceram em 1983 e 1985, respectivamente, também em Londrina, mesmo nunca tendo morado lá, pois o pai era o juiz de direito da comarca de Santa Mariana. E todas, com sua mãe Luzia, o acompanharam pela carreira no interior do estado. 

E destaca que o pai ingressou em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e só concluiu o curso na Universidade Estadual de Londrina (UEL) porque passou no concurso de escrivão de polícia e precisou se mudar para o Norte do Estado. Esse início na UFPR foi algo marcante para ele, um dos primeiros na família a ter formação universitária. Antes desse concurso que o levou à UEL, ele fez de tudo um pouco e contava com orgulho que saía da Casa do Estudante Universitário e atravessava o centro de Curitiba para jantar uma sopa barata que cabia no orçamento apertado. 

Ana Carolina Fernandes Dias relata, com imensa saudade, as suas impressões da carreira do pai no interior, de 1979 a 1991, em texto revisado pela mãe e as manas: 

 

“Meu pai foi um homem simples. Para ele, nascido e criado em Mafra, Santa Catarina, a carreira no interior paranaense fluiu com muita facilidade. 

Lembro o prazer que lhe davam as reuniões com os amigos que fazia por onde quer que passasse. Era genuína a alegria que emanava ao voltar com minha mãe dos bailes locais. Do mesmo modo, se deleitava quando, sem cerimônia, no fim do dia, alguém chegava com um peixe grande recém pescado, outros munidos de instrumentos musicais, alguns com acepipes diversos, e de repente o nosso quintal virava festa, transformando essa partilha em um verdadeiro happy hour cheio de cantoria. Dessas noites, da memória eu puxo sua voz afinada e o revezamento entre o violão e o acordeão que herdou do meu avô. 

Além disso, uma das coisas que mais lhe dava prazer era o trabalho. Tanto que há relativamente pouco tempo ele confidenciou ao meu marido que nas férias de janeiro fazia questão de sair da cidade e levar a família para a casa de praia por todo o mês, pois se ficasse na comarca seguiria trabalhando. Nessa folga forçada, num tempo em que não havia internet ou qualquer chance de home office a quase mil quilômetros de distância (como de Guaíra a São Francisco do Sul), se ocupava em deixar habitável nossa casa simples com um kit de ferramentas singelo, mas eficiente, sempre repetindo seu mantra de que o difícil se resolve já, o impossível é que demora um pouquinho.  

Nessas férias cantarolava ao som do violão, contava histórias e ensinava a família a curtir todos os frutos que o mar nos traz. Um dos meus tesouros mais preciosos é a lembrança dele me convidando, à tardinha, a irmos boiar no rio que passava no fim da rua e ia desembocar no mar. Ambos com a pele muito clara, sempre com receio de queimaduras, aquele era o nosso momento de encarar a praia: quando os corajosos bronzeados e os incautos ‘camarões’ já tinham ido embora. Nós observávamos a corrente, entrávamos na água e boiávamos até ele dizer ‘chega’. Depois, voltávamos caminhando pela areia ao mesmo ponto de início e repetíamos até cansar. O prazer de boiar a favor da correnteza é uma das lições preciosas que carrego da infância. Longe do trabalho e dos estudos, na simplicidade daquela praia tão rústica na década de 80, a correnteza nos levando parecia nos energizar para todo o resto do ano. 

Voltando ao interior, além do fórum, lugar sagrado de trabalho para ele era o escritório em casa. 

Em qualquer nova cidade, montar seu escritório domiciliar era tão ou mais importante que organizar os quartos de dormir ou a cozinha. Com razão. Passava horas ali concentrado, estudando processos. Não havia fim de semana, feriado ou madrugada que o demovesse, enquanto houvesse demanda. No início escrevia as sentenças em um caderno para depois transcrevê-las com carbono na máquina datilográfica. É nítida para mim a memória de diversas vezes acompanhá-lo a uma grande loja de máquinas de escrever em Londrina, procurando encantado diferentes ‘margaridas’, fitas ou outros acessórios, com o mesmo prazer que eu sinto hoje comprando livros ou (dizem) algumas pessoas experimentam em lojas de sapatos. Foi motivo de grande comemoração a compra da primeira máquina elétrica com visor para ler o que se escrevia antes de apertar o que hoje corresponderia ao ‘enter’. Apaixonado por novas tecnologias, demonstrava real agradecimento pelo avanço que os computadores significaram para quem trabalha escrevendo. Mais recentemente, seguia interessado em aprender sobre os recursos dos smartphones e a grande facilidade que proporcionam. E ficava impressionado com a eficiência de sistemas como o Projudi. 

Voltando ao tempo no interior, ainda na época do manuscrever e do datilografar, do telefone discado, da ausência do celular, lembro que eu o rodeava enquanto trabalhava, feito as mariposas do Adoniran Barbosa em volta da ‘lâmpida’. 

Muito apegada a ele, passava horas por perto lendo ou fingindo ser sua secretária (tinha verdadeira fascinação por seus carimbos, blocos, canetas tinteiro e máquinas de escrever). Como prêmio, ele fazia pausas e ficava conversando comigo ou me chamava para cantar em dueto. 

É de uma dessas pausas que eu recordo um episódio que revela bem o quão ligado ao direito ele sempre foi, mesmo num momento de lazer. Eu tinha uns nove ou dez anos, não mais que isso, e ele me recomendou o livro ‘O sol é para todos’, da Harper Lee, esboçando uma sinopse na qual contou que a história era narrada por uma menina da minha idade, no sul dos Estados Unidos na década de 1930, em que o pai, advogado, defende um negro acusado de estupro... 

- Pai, pai!  - interrompi erguendo a mãozinha miúda para perguntar: ‘o que é estupro?’ 

Primeiro ele segurou a respiração. Depois inspirou profundamente e ao expirar, num fôlego só, sem ideia melhor, respondeu com o conceito penal: ‘conjunção carnal forçada’. Em seguida retomou o ritmo, seguiu com a resenha, entregou-me o livro, avisou que tinha um filme ótimo baseado nele, em que o Gregory Peck ganhara um Oscar, que poderíamos assistir depois. Vou confessar que não me choquei, pois nada me chocava naquelas conversas em que ele me tratava como adulta, explicando tudo com naturalidade e paciência, mas naquele momento só consegui entender que o conceito de estupro era uma coisa muito complicada para que eu compreendesse naquela tenra idade. A leitura do livro fez sentido e desde então já o reli duas vezes. Anos mais tarde, já na faculdade, numa aula de Direito Penal, eu ri.” 

 

(Dedicado à memória de Silvio Vericundo Fernandes Dias - 27.05.1947-12.06.2020)

Por desembargador Robson Marques Cury 

 

 

Biografia 

Silvio Vericundo Fernandes Dias, filho de Vericundo Fernandes Dias e Anastácia Dias, nasceu no dia 27 de maio de 1947, na cidade de Mafra-SC. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, turma 1974. 

Advogou até ser aprovado em concurso público para o cargo de juiz adjunto, sendo nomeado em 1º de dezembro de 1978 para exercer a função na comarca de Irati no dia 11 de dezembro do mesmo ano. Após novo concurso, em 16 de abril de 1980 foi nomeado juiz de direito da comarca de Palmital, judicando ainda nas comarcas de Paranacity, Santa Mariana, Guaira, Paranaguá e Curitiba. 

Em 25 de agosto de 2003 foi nomeado juiz do Tribunal de Alçada e, no dia 31 de dezembro de 2004, foi promovido a desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná.  

Foi juiz do Tribunal Regional Eleitoral. 

Faleceu em Curitiba no dia 12 de junho de 2020.