A necessária transformação da visibilidade feminina: Um chamado contra a objetificação da mulher

 

         As mulheres de hoje ocupam espaços socialmente desafiadores e inimagináveis em séculos e décadas passados. Mesmo diante das inferiorizações e do descrédito de muitos a sua volta, elas lutaram por seus direitos e, à custa de grandes sacrifícios e enfrentando inúmeros percalços, conseguiram tornar-se mais independentes e realizadas, alcançando posições relevantes de poder e de tomada de decisão na sociedade, além de conquistarem cada vez mais vagas nas universidades, em cargos públicos e no ramo do empreendedorismo. Entretanto, um olhar atento para a realidade atual permite perceber que, a despeito da profusão dos discursos em prol do respeito à diversidade, da igualdade entre os gêneros e do empoderamento feminino, na prática, as mulheres ainda são frequentemente tratadas com inferioridade, discriminação e preconceito, tendo seus direitos violados e suas capacidades questionadas.

Uma das esferas em que esse quadro se evidencia é o setor midiático, o qual revela um retrato genuíno do atual panorama brasileiro — e também global — no que concerne, entre outras questões sociais importantes, à igualdade de gênero. Isso porque, longe de constituírem meras fontes de entretenimento ou veículos neutros destinados à transmissão de informações de maneira objetiva, os meios de comunicação têm ganhado um protagonismo cada vez maior na propagação de ideias, costumes, valores e comportamentos que moldam e direcionam a sociedade, quer para a manutenção do cenário atual em que se encontra, quer para o impulsionamento e a articulação de ações para a transformação da realidade em que está inserida. Diante disso, é lamentável constatar que, apesar dos importantes avanços já alcançados, de forma geral, no que se refere à valorização da mulher e à disseminação de conhecimentos, princípios e atitudes que visam promover o respeito e a igualdade entre os gêneros, infelizmente não faltam exemplos, nas mídias de massa, de situações em que a figura feminina é retratada de forma depreciativa, estereotipada, objetificada ou, ainda, é marginalizada e invisibilizada. Empresas de bebidas alcoólicas, de utensílios domésticos, de cuidados com bebês e filhos, de limpeza, entre outras, reproduzem estereótipos de gênero em suas propagandas, objetificando e até mesmo sexualizando o corpo da mulher, perpetuando a ideia de que certas funções, gostos e interesses seriam única ou tipicamente femininos e valendo-se da exploração do corpo da mulher como artifício para, supostamente, trazer melhores resultados comerciais. Esse fato se confirma, por exemplo, em pesquisa realizada pela Getty Images Visual GPS1, divulgada em 2021, a qual apontou que apenas 43% das mulheres brasileiras sentem que estão bem representadas na publicidade e somente 23% se consideram bem representadas nas comunicações das empresas com as quais fazem negócios. Ainda, o mesmo estudo indicou que, das mulheres que relataram se sentir discriminadas, 64% afirmaram que é por causa do corpo, forma física ou tamanho e 37% relataram discriminação por causa de como se parecem, se vestem ou se apresentam.

É importante salientar que, não raro, a objetificação e a retratação da mulher de forma estereotipada se manifestam de maneira sutil e acabam passando despercebidas pelo público ou, ainda, sendo minimizadas e naturalizadas. Nesse contexto, é fundamental identificar claramente os elementos que caracterizam esse retrato distorcido da figura feminina, para que se possa combater efetivamente o problema. De acordo com a pesquisadora Caroline Heldman2, Conselheira do Geena Davis Institute for Gender in Media (Instituto Geena Davis de Gênero na Mídia), a objetificação sexual está presente em construções simbólicas como as seguintes: a imagem só mostra parte ou partes do corpo da pessoa; quando é coberta a sua cabeça para aparecer apenas partes do corpo; a pessoa é usada como apoio para objetos; uma imagem sensual de uma pessoa é utilizada sem propósito (para vender um relógio, por exemplo); a imagem passa a ideia da violação da integridade física de uma pessoa sem seu consentimento ou de outro tipo de violência, denotando alguém vulnerável; a imagem sugere que a disponibilidade sexual é uma característica que define a pessoa; a imagem mostra uma pessoa sendo exibida como mercadoria; o corpo da pessoa é usado como tela para passar alguma mensagem.

Não é demais ressaltar que situações de exploração e objetificação do corpo feminino — sejam elas reproduzidas nos meios de comunicação ou vivenciadas no cotidiano — são inaceitáveis, pois contribuem para a violência de gênero contra as mulheres, ao reforçarem a cultura do estupro, bem como a propagação de preconceitos e estereótipos. As mulheres não deveriam ser obrigadas a se sujeitarem a condutas machistas, como olhares indiscretos, assovios, cantadas e outras semelhantes, sob a justificativa de que seus corpos provocam esses comportamentos nos homens. A naturalização de tais práticas transmite a absurda mensagem de que a mulher não passa de uma “coisa”, exercendo um papel de submissão, subordinação e dependência em relação ao gênero masculino e, ao mesmo tempo, sendo culpabilizada pelos abusos, assédios e outras formas de violência de que é alvo. Os homens, por outro lado, habitualmente são considerados e retratados como seres plenos, fortes, poderosos, provedores, ousados, agressivos, materialistas e “garanhões” — características comumente vistas como positivas e desejáveis quando associadas à figura masculina, porém malvistas, muitas vezes, nas mulheres —, relevantes para o desenvolvimento da economia e para atuação em altos cargos e funções no mercado de trabalho.

Também no âmbito laboral, diversas mulheres, crescentes chefes de família, muitas vezes com qualificação profissional acadêmica maior que os homens, ainda hoje seguem frustradas por serem remuneradas de forma desigual, mesmo quando realizam uma jornada de trabalho extenuante e com atribuições por vezes maiores que o sexo oposto. Estudos comprovam que elas trabalham mais, mas ganham menos: recebem cerca de 76% do salário pago aos homens para as mesmas tarefas e atribuições3; e ainda trabalham cerca de 5 horas a mais que eles por semana na chamada terceira jornada4 — correspondente aos trabalhos de cuidado que não são remunerados —, o que representa 20 horas adicionais de trabalho em um mês. No entanto, essa jornada extra é invisibilizada e ignorada pela maioria da população masculina e, de modo geral, considerada sem relevância para muitos e encarada como uma obrigação da mulher. Esse descaso também se reflete em sua vida pessoal, pois a falta de visibilidade e reconhecimento quanto ao trabalho de cuidado com a casa, os filhos e outros familiares ou dependentes gera um sentimento de inferioridade e desapontamento. Paradoxalmente, o valor do monetário global do trabalho de cuidado não remunerado prestado por mulheres a partir de 15 anos é de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano, o que representa 3 vezes mais que todo o setor de tecnologia do mundo5.

Os exemplos descritos deixam claro que a desigualdade de gênero ainda é um problema bem real e notório em nossos dias, com múltiplas facetas e desdobramentos que envolvem a sociedade como um todo, de forma individual e coletiva. Apesar das garantias legais e constitucionais à dignidade, à igualdade e ao respeito, ainda que os próprios fatos demonstrem que as mulheres são tão capazes, inteligentes e responsáveis quanto os homens, persistem as disparidades nas relações de poder entre os gêneros, bem como os valores e papéis erroneamente atribuídos a homens e mulheres nas mídias, nas instituições, nos ambientes de trabalho e no imaginário social de forma generalizada. Em que pesem as evidências, é comum que muitos homens, ao ouvirem falar de machismo ou patriarcado, se coloquem na defensiva e digam frases como: “Não é comigo, não. Não sou machista!”. Contudo, quando se fala em patriarcado, menosprezo ao gênero feminino, agravamento da violência contra a mulher, entre outras questões afins, afirmações que podem parecer, à primeira vista, descabidas e até sensacionalistas são, na verdade, baseadas em pesquisas científicas e índices reais apurados por instituições sérias e especializadas que se dedicam a fazer um levantamento global sobre as diferenças de tratamento existentes entre os gêneros, demonstrando desigualdades latentes, claras e inquestionáveis e apontando a necessidade da tomada de ações afirmativas, conscientes e em larga escala para modificar essa realidade tão nociva à sociedade. Não se trata de um discurso essencial ou exclusivamente feminista, não. Se queremos caminhar rumo à efetivação de uma democracia de verdade, esse percurso certamente inclui o debate sobre igualdade de gênero de forma ampla, transparente, interseccional e intersetorial.

Diante de tudo o que foi exposto, resta a pergunta: como desconstruir um fenômeno que, infelizmente, está consolidado há séculos com bases completamente equivocadas e que, de forma explícita ou velada, permeia todos os segmentos e tipos de relações sociais? Embora a resposta a essa questão seja de grande complexidade e envolva mudanças profundas de princípios, valores, crenças, tradições e comportamentos firmemente enraizados nos diversos grupos sociais, é indiscutível que a solução do problema passa pela conscientização, sensibilização e mobilização de indivíduos, instituições, organizações e comunidades, para que os múltiplos fatores e dinâmicas responsáveis por perpetuar, reforçar, naturalizar ou invisibilizar a desigualdade de gênero, as violações de direitos, a discriminação e o desrespeito a qualquer ser humano possam ser devidamente identificados e combatidos de maneira efetiva. Dessa forma, por meio da união de esforços e do maior engajamento de distintos segmentos da sociedade, será possível melhor dimensionar o problema, discernir suas causas e consequências e adotar medidas específicas, tanto preventivas quanto repressivas, que sejam eficientes e eficazes nos diversos contextos sociais, históricos e culturais.

Portanto, o que propomos aqui é um passo concreto nessa direção: para além da implementação de políticas públicas, da realização de ações educativas por instituições de ensino, de reestruturações e campanhas por parte dos meios de comunicação de massa — todas iniciativas importantes e necessárias, convidamos a cada um(a) dos leitores e das leitoras a refletir sobre seus próprios valores, crenças, atitudes e comportamentos, como também sobre seu papel na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, com igualdade de direitos e oportunidades para todos e todas. É natural que, diante de uma questão dessa magnitude, pensemos, em um primeiro momento, que iniciativas individuais não farão a diferença. Porém, uma reflexão mais detida nos leva à conclusão de que ocorre justamente o contrário: grandes mudanças começam com pequenas atitudes. Elas nascem da vontade e da disposição para agir, se expressam e ganham força em nossas relações com pessoas próximas, com quem interagimos casualmente ou sobre as quais exercemos influência — conscientemente ou não —; seja em casa, no trabalho, na academia, no transporte coletivo, na escola, na faculdade, no convívio social do dia a dia, seja em redes sociais, aplicativos de mensagens, blogs, sites, entre tantos outros ambientes e meios de comunicação que estão ao alcance da maioria de nós e que nos proporcionam o privilégio de contribuir para tornar realidade o mundo que tanto almejamos. É importante lembrar que os avanços já obtidos no campo dos direitos humanos, da igualdade de gênero, do respeito às diversidades, entre outros, só foram possíveis graças à nobreza, coragem, determinação, generosidade e empatia de pessoas que se dispuseram a enfrentar preconceitos, julgamentos, oposições e adversidades em prol de uma vida mais digna e com melhores condições para si e para seus semelhantes. Sigamos, pois, o exemplo dessas pessoas, comuns como nós, a quem por tantas vezes nos referimos com admiração, respeito e apreço, demonstrando assim, na prática, nosso reconhecimento e nossa gratidão pelas conquistas que elas alcançaram, preservando e dando continuidade ao legado que elas nos deixaram. Desse modo, a partir da transformação operada em nós, poderemos transformar também o meio em que nos encontramos e seremos capazes de oferecer hoje, às mulheres que nos cercam, nosso melhor presente para o futuro delas.

 

  1. Disponível em: https://propmark.com.br/mulheres-nao-acreditam-que-estao-bem- representadas-na-publicidade/
  2. Citada no artigo A “objetificação” feminina na publicidade: uma discussão sob a ótica dos estereótipos, de autoria de Ana Carolina Silva Lourenço, Natália Pereira Artemenko e Ana Paula Bragaglia, disponível em: https://www.portalintercom.org.br/anais/sudeste2014/resumos/R43-1169-2.pdf
  3. Fonte:                https://www.ecodebate.com.br/2016/12/05/desigualdade-de-genero- mulheres-trabalham-cinco-horas-a-mais-e-ganham-76-do-salario-dos-homens/
  4. Fonte:                https://www.ecodebate.com.br/2016/12/05/desigualdade-de-genero- mulheres-trabalham-cinco-horas-a-mais-e-ganham-76-do-salario-dos-homens/
  5. Fonte: https://observatorio3setor.org.br/noticias/trabalho-domestico-equivale-a-us- 108-trilhoes-nao-pagos-as-mulheres/