Família Mercer – Tibagi Paraná
FAMÍLIA MERCER – TIBAGI PARANÁ
Por desembargador Robson Marques Cury
Inicialmente, registro que a família Mercer é uma das mais tradicionais e importantes do município de Tibagi, desfrutando de excelente conceito na sociedade paranaense.
Sem dúvida, expoente do clã foi o desembargador Edmundo Mercer Junior, cuja história de vida está retratada em importante capítulo da História do Judiciário Paranaense. Destacou-se, também na magistratura o tibagiano Ullysses Aires Mercer filho de Luiz Leopoldo Mercer. Outro que se salientou no campo da publicidade foi Sérgio Fernando da Veiga Mercer. E outros membros da família evidenciaram-se em diversos outros setores.
E na área da farmácia o pioneiro Leopoldo Mercer foi sucedido pelo filho Douglas José Mercer bacharel em farmácia e pela sua esposa Cherubina – Dona Bina, depois pelo neto Luís Tadeu de Andrade Mercer que também cursou Farmácia e Bioquímica, e pelo bisneto Luís Felipe igualmente formado nessa faculdade da área da saúde, funcionando o estabelecimento familiar por mais de um século, atendendo diversas gerações. O outro neto Paulo Roberto de Andrade Mercer formou-se em medicina na especialidade de ginecologia. O médico Paulo Mercer lembrou que, em 1948, ano do meu nascimento, a parteira da cidade era a Senhora Uricema Cenica, então casada com Dudu irmão do Guataçara Borba Carneiro, de outra tradicional família local. O meu centenário pai, Aniss Cury então coletor federal, recordou que ajudou no parto da minha mãe Teodolinda, realizado por Uricema com ajuda de outra senhora, as quais rezavam diante das dificuldades para dar à luz.
O médico Paulo Roberto de Andrade Mercer, tem três filhos sendo que Paulo Roberto Taques de Andrade Mercer atua no gabinete da presidência do Tribunal de Justiça. O doutor Paulo Mercer registrou, a meu pedido, a secular história da farmácia da família com o seguinte título: “Um pouco sobre a farmácia Mercer”.
“Fundada em 1912, funcionou no endereço antigo (de 1912 a 1964) antiga casa do Senhor Leopoldo Mercer.
Na Praça da Matriz de nosso amado Tibagi, estava localizado o empreendimento comercial que atravessou o século: Farmácia Mercer- Na época o logradouro era chamado: Praça XV de Novembro. Hoje: Praça Leopoldo Mercer.
Criada em 1912 pelo meu avô Leopoldo Leonel de Sá Bittencourt Mercer, funcionou ali até 1964 quando meu pai Douglas José Mercer a transferiu para o outro lado da Praça central da cidade. No ano de 2019 a Farmácia Mercer foi vendida e deixou de existir.
No ano de 1915, o imóvel foi edificado atualmente na esquina da Praça com a Rua Machadinho do prédio residência do Senhor Leopoldo Mercer, em 1925 o prédio foi reformado ficando com as portas arredondadas.
No prédio, passou a funcionar o ‘Mercer Bazar’ de propriedade dos irmãos Aroldo Mercer e Maria Mercer, filhos de Leopoldo e irmãos de meu pai Douglas. O Mercer Bazar foi o ponto de encontro da juventude tibagiana nos meus tempos de adolescência e juventude (final dos anos sessenta, 70 e início dos 80).
Meu pai Douglas José Mercer (1922/1970), formado em Farmácia pela UFPR, administrou a Farmácia Mercer desde 1949 até falecer em agosto de 1970, com pouco mais de 48 anos de idade devido a infarto fulminante. Deixou cinco filhos, eu o mais velho com 18 anos e minha irmã Maria do Rocio com quase três anos. Entre nós o Athayde (Tide), o Luís Tadeu e a Maria Angélica, estes três hoje residindo em Tibagi junto à nossa mãe Cherubina de Andrade Mercer, hoje com 92 anos, viúva aos 41 anos e professora em dois padrões, no Grupo Escolar Telêmaco Borba e na Escola Normal Secundária de Tibagi.
Dona Bina, como é conhecida na cidade, uma jovem professora pontagrossense que após sua licenciatura foi trabalhar na área de educação em Tibagi e casou com o filho do ex-Prefeito, administrou a farmácia desde o falecimento de nosso pai até a formatura em Farmácia /Bioquímica de seu terceiro filho, meu irmão Luis Tadeu, em 1978.
Nosso avô, o velho Leopoldo Leonel Bittencourt de Sá Mercer (1883/1957), filho do inglês Herbert Harrison Mercer, era um prático de farmácia.
Seu pai (Wikipedia: Herbert Harrison Mercer, Kent, Inglaterra, 6 de março de 1850–Tibagi, 1º de agosto de1893), foi um inglês que imigrou para o Brasil, chegou no ano de 1870 em Tibagi junto com seu irmão mais velho Frederick Harrisson Mercer, depois de uma breve passagem por Curitiba, após desembarcar com um grupo de seis conterrâneos no Porto de Santos.
Líder comunitário na região e político na cidade, Leopoldo foi prefeito eleito em Tibagi, e também nomeado na época do Estado
Novo, por 16 anos; faleceu com 74 anos, vitimado por diabetes, o mal que acomete muitos componentes de nossa Família.
Depois da morte do meu pai Douglas, em 13 de agosto de 1970, minha mãe Cherubina teve que passar a comandar a farmácia.
Eram só duas (2) farmácias na cidade, a do meu pai e a do
Sr. Jonathas Baptista Bueno / Sr. Jonas, do outro lado da Praça, que faleceu no início dos anos sessenta e logo depois a sua família encerrou as atividades do estabelecimento comercial.
Portanto, durante um bom tempo a nossa Farmácia Mercer foi a única na cidade, e só depois na década de oitenta um outro tibagiano, o Sr. Lasmar Siqueira abriu a sua farmácia que existe até hoje.
Atualmente, são nove estabelecimentos farmacêuticos na cidade, todas elas com o designer atual de lojas de multiuso, iguais às que existem nas grandes cidades e ligadas à grupos de franchising na área de medicamentos.
Viúva aos 41 anos de idade, com cinco filhos minha mãe Cherubina não podia deixar nada parar e se tornou sua administradora diuturna, tornando-se muito prática da área farmacêutica e conhecedora dos meandros da assistência na área de saúde local.
De início, por um período curto de pouco anos, por imposição fiscal obrigatória a farmácia funcionou como como um ‘posto de medicamentos’ já que necessitava um Farmacêutico Responsável (nossa mãe era Professora nos dois padrões - Grupo Escolar e Escola Normal) e foi feita a contratação de um profissional amigo do nosso pai, de Ponta Grossa, para assinar pela firma. Mas a administração familiar se manteve. Logo a seguir com a formação profissional em Farmácia e Bioquímica meu irmão Luís Tadeu de Andrade Mercer passou a ser seu proprietário e administrador.
Foi, com certeza, uma das mais longevas Farmácias do Estado do Paraná no curso desses 107 anos, servindo com todo carinho, dedicação e respeito à comunidade da cidade de Tibagi e do seu vasto município, motivo de muito orgulho para nossa Família.
Agradecemos sempre à Deus pela honra de sermos seus servos nessa missão nobre. Obrigado minha amada Mãe Bina pela sua luta eterna de vida para nos manter em torno deste propósito e de nossa união.
Segue as reflexões sobre o encerramento, em junho de 2019, das atividades da Farmácia Mercer.
A semana que começa amanhã, domingo, e que se encerra no dia de sábado 14 de junho, ficará emblemática, marcada para mim com um forte amargor de lembranças pois sei que a Farmácia Mercer, em Tibagi fechará. É sua última semana. Tudo tem sua hora.
Hoje, é conduzida e administrada pelo meu irmão Luís Tadeu e seu filho Luís Felipe. Ambos são farmacêuticos como o meu pai Douglas. Este assumiu do seu pai, meu avô Leopoldo, um prático, em 1949 logo após se formar aqui em Curitiba e dirigiu os negócios da família até sua morte em agosto de 1970. Farmácia que nos ajudou a sobreviver e que teve na vida de minha mãe Cherubina Mercer uma importância enorme.
Ali na Farmácia Mercer, tomei minhas primeiras lições na área de saúde do ser humano, o que foi fundamental na minha decisão de vida de fazer o curso de Medicina.
Durante muitos anos, foi a única ou uma das duas únicas farmácias da cidade. Uma cidade pequena, carente de médicos, que vez ou outro nenhum médico se encontrava na cidade pois o município muito grande em área territorial e com seu único ou seus dois únicos profissionais (isto mais trade) tinham que sempre estar se deslocando para a área rural.
Local para onde se dirigiam muitas pessoas mesmo antes de ir até o hospital. A Farmácia Mercer, fundada em 1912 e seguramente uma das mais antigas ainda em existência no Estado do Paraná, com grande prestígio no passado, foi atropelada pelas mudanças gritantes nesse tipo de comercio, onde hoje sobrevivem como verdadeiros supermercados com suas lojas de conveniência vendendo quase de tudo e lá no fundinho um pequeno estoque de medicamentos que é reposto quase que diariamente pelas centrais das grandes redes farmacêuticas. Por comprarem em grandes lotes de medicamentos e distribuírem para suas diversas lojas, podem eles, os novos donos do comercio de remédios, manter um preço mais baixo e fazer esse chamado “dumping” com os preços, destruindo os pequenos estabelecimentos que não têm força de competição comercial e são levados a fechar suas portas. Mudou, portanto, o perfil das “antigas farmácias” que deixaram de existir pelo simples fato de não suportarem a concorrência. Isso é um fato real em todo o Brasil.
É a nossa realidade. Mas não importa. Falo isso tudo para contar uma história que ocorreu comigo.
‘A cobra e o esculápio’.
O ano: 1958. Brasil versus França, Mundial de Futebol na Suécia. O local: Farmácia Mercer, Tibagi, minha terra, interior do Paraná, região dos Campos Gerais, a 230 km da capital Curitiba.
Eu tinha quase sete anos e já um tanto curioso tentava entender um pouco de futebol e da conversa dos homens. Ficava por ali entre os mais velhos, amigos do meu pai Douglas, na época o único farmacêutico formado da cidade. O outro, o Sr. Jonas, era um prático da farmácia, nossa concorrente e grande amigo, lá no outro lado da praça matriz da cidade, praça que na época levava o nome de XV de novembro. Hoje, desde os anos setenta a praça é denominada de Praça Leopoldo Mercer, nome do meu avô e fundador da Farmácia.
A Farmácia, como era comum nas pequenas cidades do interior era um local onde se reuniam os amigos para colocar o papo em dia, jogar conversa fora e naqueles dias escutar os jogos de futebol pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, principalmente aos sábados pela manhã. Até porque ali, naquela casa vivia Aroldo Mercer, meu Tio, entendido do futebol, recém retornado da capital onde se formou em Direito, pessoa curiosa e que assinava os jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. Era o local certo para se comentar notícias que chegavam de longe, dos confins do estrangeiro, ‘das Europa’, da distante Suécia na época da Copa do Mundo quando o Brasil foi pela primeira vez campeão Mundial. Diziam que lá o amor era livre e as moças lindas e loiras com seus olhos azuis até dormiam com seus namorados na casa dos seus pais. Coisa muito difícil de entrar na cabeça de um interiorano paranaense, católico e cheio de pecados, todos devidamente escondidos e nunca relatados, nem ao santo padre da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios. Isso mais tarde, claro, porque nesse tempo eu era muito criança para entender essa coisa de pecados ou de mulheres. Depois, com muito custo no confessionário e assim mesmo cheio de meias verdades as verdades eram cautelosamente relatadas aos padres redentoristas norte-americanos que cuidavam da Igreja e abençoavam a todos nas santas missas e procissões.
Os jogadores de futebol brasileiros, tipos diferentes, parece que faziam sucesso por lá naquela Copa do Mundo da Suécia. Nesse torneio de futebol surgia para o mundo o maior atleta do século: Edson Arantes do Nascimento, o negro Pelé. Da nossa cor, da cor do Brasil, do já famoso Café do Brasil. O nosso Rei Pelé, ainda um menino, com seus pouco mais de dezesseis anos que ajudaria muito no futuro, o Brasil se tornar cada vez mais conhecido e importante no cenário mundial futebolístico.
Recordo que, na porta do estabelecimento, existia um banquinho de madeira, onde presenciei pela primeira vez uma morte acontecer. Ali chegou e foi colocado por seus familiares um homem humilde, trabalhador rural, com seus sessenta anos na aparência, que hoje, acredito, pelo que entendo e aprendi das vicissitudes dessa vida, não deveria ter mais que quarenta, no máximo cinquenta anos de idade.
Nas pequenas cidades do interior, a farmácia era como uma extensão do hospital, eu diria que às vezes até mais importante.
Sempre aberta, de segunda a segunda, lá se conseguia o soro antiofídico como para este caso; as injeções para as dores e doenças infecciosas contraídas de forma não divulgável e inesperada; as penicilinas e estreptomicinas-da-vida bem como os paliativos ou protetores como a camisinha-de-vênus que não se encontravam em outro comercio, adquiridas após conversa reservada com o farmacêutico amigo que guardava aquele precioso segredo em sete chaves. Ali na Farmácia podia-se comprar remedinhos para a dor, o “doutor farmacêutico” fazia curativos, tirava a pressão arterial é aplicava injeção na veia, com a agulha fervida e esterilizada na hora.
Existia em Tibagi apenas um hospital (no enorme município) com um único médico - um senhor loiro tcheco-eslovaco, excelente clínico, muito culto, poliglota, professor de Latim no Ginásio local e desenhista de mão cheia e conhecedor de música clássica.
Contava-se que tinha quadros lindos em sua casa, uma réplica de Guernica de Picasso e que o Doutor tinha planos faria de fazer um afresco retratando “Guerra e Paz” no clube da cidade. Mas, também se comentava entre os homens que ele tinha hábitos estranhos, pois já com certa idade, nunca se soube do interesse do Doutor por se casar; um ser misógino, curiosamente jamais foi visto na companhia das casadoiras moças da cidade. E eram muitas pretendentes. E de forma curiosa para a época, o Doutor viajava constantemente. Sabe-se lá para onde e o que iria fazer? Não foi encontrado naquele dia que chegou o homem mordido pela cobra.
Procedente da área rural, foi trazido após ser mordido já há algumas horas, pois naquela época o transporte era difícil, com estradas de terra e época de verão chuvoso, tudo era mais complicado. Calçava alparcatas e tinha um pano branco enrolado na perna como curativo compressivo. Seria uma jararaca? Uma cascavel com seu barulhento guizo revelador da idade? Era desencontrada a informação que nos davam seus acompanhantes familiares na Farmácia. Ninguém sabia. Mas tudo se resolvia ali na Farmácia do seu Zé, como era chamado meu pai, pois para lá os familiares se deslocaram na esperança da aplicação do soro antiofídico, que sempre se dispunha, armazenado e refrigerado. Meu pai era muito cuidadoso com essas medidas de urgência, pois era muito comum na época casos dessa natureza naquela região.
Pois bem: após algumas horas do fato ocorrido, ali no banquinho da farmácia foi deixado o pobre vivente, trazido em carroça pelas difíceis e enlameadas estradas de terra. Chegou exausto, bastante fraco, com um rudimentar curativo manchado de sangue da fatal picada próxima ao tornozelo da perna direita. Já não urinava e suava intensamente. Tinha uma cor estranha e gemia ofegante como quem aguarda um resto de sopro de vida. Não deu tempo para nada. Morreu ali mesmo. Assisti, sem querer, pela primeira vez como se acaba uma vida. Não sei, mas acho que, mais ou menos por aí começava minha atração pela Medicina’.
Mais tarde, no dia a dia de uma Farmácia do interior e convivendo com as dificuldades que sempre existiram na assistência medica de um povo carente, comecei a ver, mexer e trabalhar com a saúde e com a doença. Enfim, com a vida. Não sei bem por qual motivo escolhi Ginecologia e Obstetrícia.
Comecei, então, a aprender mais e mais e entender melhor como se começa uma nova vida.
Passaram-se muitos anos, e em cada parto que faço continuo a me emocionar com o novo ser humano que ajudo e presencio nascer.
Sempre festejo esse divino momento comigo mesmo.
Ironicamente, lembro aqui do genial inglês Bernard Shaw que certa vez disse: ‘Nunca tente ser eterno. Você não terá sucesso!’.
Meu irmão mais jovem o Luís Tadeu herdou a Farmácia Mercer por ter feito Faculdade de Farmácia e Bioquímica e assumiu essa função no final dos anos setenta. É o personagem dessa história.
O Tadeu deu uma folga para a Mãe Bina que após a morte de nosso pai, prematuramente aos 48 anos em 1970, teve que se desdobrar e contratar um farmacêutico responsável durante alguns anos; dividiu suas funções como mãe de cinco filhos, professora em dois padrões e atendente do comércio de farmácia, numa cidade carente de recursos na área de saúde.
Naqueles anos, abria no horário comercial normal, mas atendia num regime de plantão permanente pela campainha que tocava na residência anexa a todo momento, inclusive nas madrugadas, todos os dias de segunda à segunda, fato que fez de minha mãe uma expertise da área de assistência à saúde no local.
Muitas histórias curiosas ocorreram e durante um bom tempo o
Tadeu guardou – e guarda até hoje – ‘bilhetes’ que recebia de clientes, muitos destes curiosos e engraçados, com um linguajar característico de pessoas simples do interior, pessoas conhecidas e velhos fregueses com conta corrente aberta, com caderno de despesas na Farmácia, para acerto de contas no final do mês, coisa muito comum naqueles tempos e que só eram quitados só depois que recebiam seus salários, contas que eram frequentemente refeitas e transferidas para datas posteriores, sem qualquer acréscimo de juros ou correções.
Cidade pequena, ali o farmacêutico conhece todo mundo e a liberdade deste tipo e forma de negócio sempre existiu, hábito comum na época e com certeza um dos motivos para o não crescimento econômico do negócio. Inadimplência está no DNA do cidadão brasileiro e Tibagi não é diferente do resto do Brasil. Mas isso é outra história.
O fato de ser uma pessoa de fácil diálogo, pronto para tudo, incapaz de dizer um ‘não’, torna as pessoas ainda mais acessíveis e a liberdade da solicitação de um favor, um atendimento em domicílio para aplicar uma injeção, trocar um curativo, avaliar uma pressão arterial, ou seja o que for, assim atendia o meu irmão Tadeu.
Tibagi era lugar uma cidade carente de médicos, muitas vezes com um só na cidade, ou dois, sempre assoberbados pelo atendimento no Hospital, no Posto de Saúde da cidade ou em outros do município imenso em extensão territorial. Enfim, com as dificuldades que todos sabem que ocorrem por todo canto neste nosso tão necessitado, desigual e desassistido país na área médica e de saúde pública. Estou me referindo aos anos setenta, oitenta, e sei perfeitamente que as coisas melhoraram bastante, mas mesmo hoje esta situação persiste em muitos lugares distantes dos grandes centros urbanos ou mesmo nas periferias das grandes cidades. As coisas mudaram muito desde aqueles anos para hoje, mas ainda ocorrem coisas inacreditáveis nessa área em muitos locais, sem qualquer exagero.
Todos têm visto a enorme repercussão que ocorreu recentemente com os milhares de médicos cubanos que prestavam serviços em muitos municípios pobres Brasil afora. E também em alguns (muitos) municípios não tão pobres assim, mas com uma massa de gente necessitada sem dúvida alguma. E aqui não vai nenhum viés ideológico na questão. Questão humanitária, tão somente. Não vamos “tergiversar”, como diria um Juiz do STF. Uma curiosa postagem de um amigo aqui de Curitiba com a foto de um ‘bilhete de anotações de compras de mercado’ atribuído ao famoso Michelangelo Buonarroti lá na Florença dos Médici no ano de 1518, me traz à lembrança alguns ‘bilhetes de encomendas’ na Farmácia Mercer, que meu irmão tão cuidadosamente guarda e que servem, com certeza, para um bom trabalho de estudo sociológico da região, se assim posso dizer.
Muitos deles engraçados e interessantes.
Reproduzo um desses casos, que meu irmão conta com detalhes que talvez não possa aqui reproduzir, mas tentem imaginar a cena, como um exercício de dramaturgia. Certa tarde, com a farmácia movimentada chega um menino com seus oito, nove anos de idade, filho de um conhecido freguês (de caderno) e aguarda pelo atendimento do farmacêutico, já que pediu e não aceitou ser atendido pela funcionária ajudante de balcão.
Logo que se desocupou, meu irmão foi até ele que lhe entregou de imediato, em mãos, um bilhetinho enviado pelo seu pai. Ali estava escrito: - ‘Doutor Tadeu: olhe bem na cara e nos zóio desse vivente e veja o que posso dar para ele que anda meio fraquinho. Acho que é bichas...! ‘ Nisso, imediatamente o Tadeu olhou e o menino estava do outro lado do balcão na ponta dos pés para ficar mais alto, olhando para ele com os olhos arregalados para o “doutor” observar bem direitinho, seguindo à risca com certeza, a orientação do seu papai.
Como bem afirmou o russo Tolstoi: ‘ A felicidade é uma alegoria, a infelicidade uma saga! ‘
Ou, em outras palavras: A felicidade só tem um rosto e o infortúnio dá-se a conhecer ao homem de todas as formas e feitios.
Outro caso singular, é a compra de preservativos na Farmácia Mercer.
A logística para se conseguir comprar algumas unidades de preservativos masculinos era muito especial e delicada. Falo dos anos sessenta, época bem do início das pílulas anticoncepcionais, ainda olhadas sob a vista preconceituosa e pecaminosa da sociedade e sem o aval dos padres locais, apesar do avanço em outras áreas pelos simpáticos padres redentoristas norte-americanos da Igreja Católica Apostólica Romana, a grande responsável pelos ritos religiosos na cidade. Naquela época eram raros os evangélicos e ateus nas pequenas cidades e os que existiam em Tibagi eram perfeitamente conhecidos.
E produtos dessa natureza só se vendiam em Farmácias. Como era a única na cidade, ali era o garimpo certo para comprar as camisinhas-de-vênus jontex ou as pílulas para a patroa não engravidar, apesar da proibição da Igreja.
Os preservativos, fato cultural, eram reservados para as relações extraconjugais e adquiridos no maior segredo. E a compra muito delicada e em momento oportuno tinha que ser feita exclusivamente com o balconista vendedor, homem, de preferência com o farmacêutico local, o seu Zé Mercer, que chamado em particular quando não existia mais ninguém por perto atendia o amigo cliente e buscava no reservado do escritório o produto guardado a sete chaves. Assim era o teatro da aquisição do precioso produto que saia devidamente acondicionado e claro, pago em dinheiro, nunca deixando debitado e registrado o crime no caderno de compras.
Outro fato, digno de nota. Um pequeno engano: nota fiscal de despesas do mês na farmácia com o nome do destinatário errado.
A correria do dia a dia com suas múltiplas funções de mãe, professora, dona de casa, administradora da Farmácia e um tanto de “médica” quando era procurada por muitas pessoas, também mães e preocupadas com seus filhos, numa cidade onde a falta de médicos ou dificuldade para atendimento imediato era uma constante, fazia de minha mãe uma pessoa de mil e uma qualidades.
Sempre pronta para tudo, ela não media esforços para atender, ajudar, se precisar ir até a casa do vizinho dar uma injeção na veia, orientar para um medicamento correto (na sua ótica e experiência) com a dose correta e a maneira certa de dar um medicamento, essas coisas que fazem do profissional de uma farmácia uma pessoa útil o tempo todo na pequena cidade.
Pois bem. Tudo isso a deixava com a cabeça atribulada e claro que era imperioso que em determinado momento tivesse ela um ‘tilte’ como dizem hoje a meninada e escorregasse em algum instante, numa coisa menor ou de menos valia.
Certo dia, atendendo no balcão, recebeu um antigo cliente que ali estava para acertar a conta do mês, medicamentos ou artigos de perfumaria entregues à sua esposa ou criados com pedidos recebidos em pequenos papéis.
Feitas as contas, para pagar o cliente pediu a nota fiscal no que foi prontamente atendido. No final do dia, para fechar o caixa e revisão de todas as notas distribuídas, minha mãe percebeu o erro fatal: ela escreveu na nota fiscal entregue ao velho freguês, o nome errado, o do amante de sua esposa, fato que a cidade inteira sabia. Coisas de pequenas cidades, “a vida como ela é”, como dizia o anjo pornográfico Nelson Rodrigues
Curioso, foi um pequeno furto na Farmácia Mercer realizado pelos sobrinhos adolescentes da capital.
As férias de verão sempre foram muito animadas no Tibagi.
Passeios no Arroio da Ingrata, banhos no Rio Tibagi, serenatas nas madrugadas, jogos de futebol e claro, em fevereiro, o velho e tradicional carnaval tibagiano, naquela época nos clubes da cidade:
o ‘Clube Tibagiano’, dos brancos e o ‘Estrela da Manhã’, dos pretos.
Falando assim até parece que existia um apartheid na minha aldeia, mas isso não é verdade. Só no Carnaval, quando as pessoas amigas de todos os dias se dividiam e se misturavam por curto período de tempo no Baile da Terça-feira quando um clube “visitava” o outro, inclusive levando a sua própria banda carnavalesca e os habitués do clube visitado se divertia subindo nas mesas, dançando e apreciando seus visitantes sambar no seu salão. Era uma apoteose. E eles, do clube vizinho, o velho Estrela, sim, eles é quem sabiam sambar o samba verdadeiro, com sua verve característica, cadência, ritmo e estilo.
Mas o assunto aqui é outro. Metade dos anos sessenta, isso lá por 1965/66, os parentes passando férias de verão no Tibagi. Sobrinhos indiretos, filhos dos primos da capital, sempre muito animados e com novidades, calças jeans saint-tropez, tênis coloridos, cabelos compridos à moda Beatles, foram visitar o Tio Douglas na Farmácia Mercer já devidamente programados e enquanto uns distraíam o Tio, outro(s) mais rápidos no intento furtaram uns comprimidos de Pervetin e Dexamil (metanfetamina) para as folias do carnaval. Não conseguiram achar os frascos da Rhodia de anestésicos Kelene que serviam como anestésicos e fariam o lugar do já afamado lança-perfume, pois estavam guardados a sete chaves num armário em separado. Assim foi!
Assim, foi mais uma das inúmeras histórias dos antigos e animados carnavais da minha terra”.
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Por desembargador Robson Marques Cury