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Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher: Interface Multidisciplinar e a Cultura da Paz em Casa


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: INTERFACE MULTIDISCIPLINAR E A CULTURA DA PAZ EM CASA

Artigo escrito pelos Desembargadores Lenice Bodstein e Mário Luiz Ramidoff**

"Quem julga as pessoas não tem tempo para amá-las."

Madre Tereza de Calcutá

A multidisciplinaridade é uma estratégia epistemológica que tem oferecido importantes contribuições teórico e pragmáticas – inclusive, metodológicas – para o oferecimento de (re)soluções cada vez mais adequadas a questões pertinentes ao relacionamento humano, aqui, destacadamente, acerca da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Por isso mesmo, que, a mobilização através da divulgação e da arregimentação de protagonistas do cenário da violência doméstica e familiar contra a mulher, constitui-se em um importante desafio, hoje, da rede de proteção e do Sistema de Justiça.

E, para tal desiderato, o Sistema de Justiça deve (re)organizar-se estrutural e funcionalmente, com o intuito de que possa oferecer uma específica e adequada prestação jurisdicional para o acertamento de casos legais (concretos) relacionados à violência doméstica e familiar contra a mulher.

Pois, como se sabe, a intervenção estatal, nessa área tão sensível, não pode ser reduzida, no âmbito penal, ao binômio repressivo-punitivo, e, sequer, no âmbito cível, ao binômio compensatório-indenizatório.

Por isso mesmo, entende-se que o atendimento multidisciplinar, e, de forma integrada, com os diversos segmentos sociais, institucionais e organizacionais, mediante o oferecimento dos diversos serviços de atendimento à mulher, certamente, deve ser facilitado por todos os meios desburocratizados, e, isto se dá através de encaminhamentos adequados e imediatos.

Desta maneira, o atendimento multidisciplinar em um mesmo local e em ambiente integrado para o atendimento da mulher, por certo, requer a participação dos diversos setores públicos que desenvolvem atribuições afins, com o intuito de que imediatamente se adotem todas as medidas legais e adequadas à promoção e à defesa de suas liberdades públicas, para além do mero “enfrentamento”, enfim, simples “combate” à violência doméstica e familiar.

O objetivo é de não só impedir a prática e mesmo a reiteração de toda sorte de violência – física, psíquica (moral) e social – à mulher, mas, principalmente, conscientizar a todos sobre a importância da mudança cultural, vale dizer, tanto do senso comum (técnico-jurídico), quanto da opinião pública, acerca das alternativas resolutivas mediadas por intervenções não-violentas (paz em casa).

A paz em casa, por certo, não pressupõe a absoluta ausência de conflitos, mas, sim, a necessidade de intervenções que não sejam tão somente a expressão material e processual do exercício do monopólio da força; isto é, da legitimação da violência estatal que se destina ao controle da violência social.

O tratamento adequado de tais questões, certamente, ultrapassa o âmbito meramente experimental (pragmático) da repressão, prevenção, enfrentamento, combate e erradicação de todas as formas de violação aos direitos da mulher.

Pois, hoje, através da cultura da não-violência – aqui, no âmbito familiar e doméstico (paz em casa) –, então, epistemologicamente, fundada no diálogo e nas importantes contribuições multidisciplinares, importa, sim, uma ampla (re)visitação das categorias dogmáticas e elementares que se encontram legalmente consignadas na Lei Maria da Penha, no Código Civil (Família e Sucessões), no Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), no Estatuto da Pessoa Idosa ( Lei n. 10.741/2003), e, no Estatuto da Juventude (Lei n. 12.852/2013).

Exemplo disto é a multiparentalidade, que, agora, está a desafiar o ordenamento jurídico brasileiro; bem como o Estatuto da Vítima que se encontra em elaboração na e pela Comunidade Europeia, cujo centralidade e preocupação não se encontram apenas em torno da vítima, mas, também, do agressor, infrator, molestador.

No entanto, a realidade brasileira ainda está a demandar uma intervenção estatal mais ampla, com o intuito de que contemple, mais de perto, a mulher, o próprio ambiente doméstico e familiar, os filhos infanto-adolescente, a pessoa idosa, e, de todos aqueles familiares que foram alcançados ou vitimados pela violência em casa.

A violência doméstica e familiar, por isso mesmo, exige uma nova intervenção de cada um dos órgãos públicos que desenvolvem atividades e funções pertinentes à proteção da mulher, da criança, do adolescente, da pessoa idosa, das pessoas com deficiência, com o intuito de que também sejam compartilhadas, e, assim, incentivadas a criação de práticas adequadas e inovadoras (cultura da paz em casa).

A mobilização da opinião pública e do senso comum técnico-jurídico através do compartilhamento da cultura pela não-violência – e, aqui, destacadamente, da paz em casa – é um primeiro e importante passo que pode ser amplamente veiculado através dos meios de comunicação e das vias computacional-eletrônicas (redes sociais).

O stalking, o cyberbullying, por exemplo, são novas formas de violências que podem ser praticas no âmbito doméstico e familiar, e, que, por isso mesmo, devem receber tratamento adequado não só através de uma específica legislação de regência, mas, também, devem ser veiculados esclarecimentos e informações adequadas nos meios computacional-eletrônicos (redes sociais) – facebook, twitter, instagram, whatsApp, etc. –, com o intuito de que todos possam ser conscientizados através dos valores e dos princípios humanitários difundidos pela cultura da não-violência (paz em casa).  

Por isso mesmo, impõe-se a conjugação de esforços, a troca de experiências, a capacitação permanente e séria de todos os envolvidos na promoção e defesa dos direitos da mulher – assim como dos demais vitimizados –, com o intuito de que se possa trabalhar em rede de proteção às vítimas da violência doméstica e familiar.

A interface multidisciplinar com o âmbito jurídico-legal não pode se constituir apenas em uma estratégia para (re)solução compartilhada de conflitos de interesses; senão, que, também deve servir como instrumental político-social para a mutação cultural (ideológica) – aqui, para a consolidação de uma cultura da não-violência: a paz em casa – dos aparelhos repressivos, ideológicos e demais instituições estatais.

A interface multidisciplinar e a cultura da não-violência (paz em casa), assim, certamente, cumprirão importante função social para transformação das relações que se desenvolvem no seio do núcleo familiar – então, inserido, em uma sociedade capitalista, cuja a injusta distribuição de renda é uma de suas principais características – tendo-se em conta que o Estado brasileiro se pretende democrático e de Direito.

Eis, pois, o desafio civilizatório e humanitário, atualmente, lançado à cultura da não-violência (paz em casa), qual seja: a superação epistemológica – teórico-pragmática – para que deixe de ser um mero instrumento multidisciplinar que se destina à (re)solução de conflitos, e, então, possa se constituir em um importante fator de transformação cultural, política e social, importando, assim, em uma forma alternativa de melhoria da qualidade de vida individual e coletiva (emancipação subjetiva).