Padre Gustavo Henrique Pereira Filho
PADRE GUSTAVO HENRIQUE PEREIRA FILHO
Por Des. Robson Marques Cury
Conhecido como o “padre dos três poderes”, padre Gustavo viveu até os 95 anos (faleceu em 2006) e passou boa parte de sua vida em Curitiba, onde sua participação junto aos universitários durante o regime militar foi marcante e decisiva. Ele sempre lutou pela democracia. “Só que suas armas foram o amor, o conhecimento, a tolerância e a fraternidade”, disse o ex-governador Orlando Pessuti, que considerava o Padre Gustavo seu orientador religioso e político.
Nascido no ano de 1911 em Santa Maria (RS) e filho de portugueses, padre Gustavo era o único homem numa família de cinco filhos. Mesmo revelando uma forte vocação para o sacerdócio desde a infância, foi forçado pelo pai a cursar Medicina, profissão que abandonaria após a morte dele. Foi quando sentiu livre para seguir o caminho de sua vocação.
Depois de concluir o seminário no Rio Grande do Sul, ele chegou em Curitiba no final da década de 50 para atuar junto aos estudantes da Universidade Federal do Paraná, onde os liderou em muitas manifestações por direitos políticos e pela participação mais ampla e democrática deles na discussão dos rumos da universidade. Sempre teve muito carinho com os jovens e usou de sua experiência e conhecimento humano para orientá-los, porque entendia que “a força sem entendimento é veleidade pura”.
Padre Gustavo se destacou na “Greve do Terço”, ocorrida em plena ditadura militar, quando os estudantes exigiam maior participação no Conselho Universitário. O movimento resultou no enquadramento de 35 manifestantes na Lei de Segurança Nacional. Ele saiu em defesa dos estudantes e acabou conhecido pelos políticos da época, entre os quais o ex-governador José Richa. Padre Gustavo celebrou o casamento do ex-governador e batizou todos os seus filhos. Mais tarde, celebrou o casamento de Beto Richa, ex-prefeito de Curitiba. Foi o próprio José Richa que o tornou capelão do Palácio Iguaçu há cerca de 30 anos.
Algo semelhante também ocorreu entre o padre e o então presidente da Casa dos Estudantes Universitários (CEU) na década de 70, o estudante de Agronomia Orlando Pessuti. Gustavo foi o responsável pelo casamento de Pessuti e mais tarde também batizou seus três filhos. Foi nessa época que Gustavo também conheceu o estudante de Direito e Jornalismo, Roberto Requião, ex-governador do Estado. Padre Gustavo acumulava a função de capelão do Palácio Iguaçu, da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça.
Culto e erudito, à capela do Tribunal de Justiça, nas missas dominicais, todos afluíam para abeberar da sabedoria dos seus sermões. Eu e a esposa Maria Regina, frequentadores habituais, ficávamos atentos às longas homilias do Padre Gustavo, repletas de citações bíblicas, filosóficas e humanistas. Verdadeiras aulas de teologia. A sua fotografia está entronizada na capela do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
Quem bem o conheceu, por quase meio século, foi o Desembargador Accacio Cambi, e definiu numa frase o Padre Gustavo: “Exemplo de sacerdote, muito contribuiu para a formação da família curitibana, em especial, da classe universitária”.
Atendendo gentilmente ao pedido deste autor, prestou expressivo depoimento acerca do notável jesuíta:
“Minhas relações com Pe. Gustavo Pereira Filho começaram no início de 1958, quando ingressei na Faculdade de Direito da UFPR e, logo em seguida, na Juventude Universitária Católica (JUC).
Pe. Gustavo era natural de Santa Maria RS. Formou-se em Medicina, especializou-se em pediatria. Ao completar 40 anos, ingressou no seminário; foi ordenado sacerdote pela Companhia de Jesus. No final da década de cinquenta, a convite de Dom Manoel, arcebispo de Curitiba, transferiu-se para Curitiba, com o encargo de dirigir a Juventude Universitária Católica (JUC).
A JUC era um movimento leigo, que reunia jovens universitários de todas as faculdades. Promovia reuniões semanais, encontros de estudos, caminhadas em romaria e outras atividades religiosas. Aos domingos, era realizada a missa dos universitários na Igreja de N. Sra. do Rosário, oficiada pelo Pe. Gustavo, com a participação dos estudantes no canto – na execução do órgão -, e nas leituras.
Pe. Gustavo manteve atuação direta com os estudantes, não só através da JUC, mas também pelo fato de residir na Casa do Estudante Universitário (CEU). Após ali residir por vários anos, mudou-se para seu apartamento na esquina da Av. Cândido de Abreu com a Rua Barão de Antonina, no Centro Cívico.
O dedicado sacerdote também foi designado como capelão do Governo do Estado e da Assembleia Legislativa; nas capelas respectivas, semanalmente, Pe. Gustavo rezava missa. Daí decorreu a sua grande amizade com o governador, os deputados e seus auxiliares, assessores e funcionários.
Após concluir o curso de Direito e ingressar na magistratura, mesmo permanecendo mais de 14 anos no interior, nas diversas comarcas que atuei, mantive cordial relacionamento com Pe. Gustavo. Sempre que vinha a Curitiba, procurava visitá-lo. Depois que retornei à Capital, promovido, continuei a relacionar com ele: nas missas semanais na Capela do Tribunal de Justiça, como seu coroinha. Nessa ocasião, servia, também, como seu motorista: conduzia-o de seu apartamento ao Palácio da Justiça, para a missa no Tribunal, e, após, levava-o para rezar a missa dos universitários.
Pe. Gustavo teve uma especial influência em nossa família. Ele crismou, autorizado pelo Arcebispo, meu filho Eduardo; celebrou o casamento de Maria Paula e Eduardo, na Igreja Sta. Terezinha, e me inspirou para dar o nome de Gustavo ao meu primeiro filho. Além disso, por ocasião da formatura do Eduardo, na Faculdade de Direito, ofereceu-lhe o Código de Direito Canônico, com a seguinte dedicatória:
“EDUARDO. Ao meu mais querido filho adotivo, com carinho, afeto e a mais paternal benção de quem tanto o ama em Nosso Senhor Jesus Cristo. Na ocasião da formatura em Direito, oferece a MUC e o seu Pe. Gustavo. Curitiba, 01.03.98.”
Maria Inês, minha esposa, tinha um carinho especial pelo Pe. Gustavo. Era uma pessoa vocacionada; muito inteligente – dominava o Francês; devoto de Sta. Terezinha do Menino Jesus. Excelente orador – suas homilias eram verdadeiras aulas de religião. Venerava São João Batista, por considerar um santo destemido e lutador em favor dos princípios cristãos.
Em resumo, tenho as melhores recordações de Pe. Gustavo. Foi um sacerdote dedicado, estudioso, inteligente, que muito contribuiu para a evangelização da sociedade curitibana, em especial, dos estudantes universitários. Um exemplo de virtudes cristãs, que marcou época em Curitiba e é sempre lembrado, carinhosamente, por todos aqueles que tiveram o prazer de conviver com sua admirável pessoa”.
Cabe transcrever a personalista análise do jornalista José Carlos Fernandes ao publicar no matutino Gazeta do Povo, um ano antes do falecimento do clérigo (2005), o artigo intitulado: “AS MUITAS VIDAS DO PADRE GUSTAVO PEREIRA”.
“O ano de 1968 não terminou para o padre Gustavo. Ele lembra de episódios que o vento não levou, como uma tentativa de invasão policial à Casa do Estudante Universitário (CEU), em Curitiba. A moçada que morava na instituição se defendeu como podia com pedras. Era a ‘Idade da Pedrada’. ‘O salão social ficou cheio de tijolos. Foi uma disputa de forças’, ilustra o nonagenário que não assistiu a essa guerra do outro lado da rua nem soube do acontecido pelos jornais. Ele estava dentro da CEU da qual foi capelão por duas décadas, tempo em que dividiu o teto e as pedras com os hóspedes do barulho.
A ligação do padre Gustavo com os estudantes marcou os anos 60 e 70. ‘Ele era uma instituição na cidade’, resume o jornalista Carlos Jung que, naquele tempo, cumpriu o destino das pessoas de sua idade. Não só se tornou amigo do sacerdote como o convidou para celebrar seu casamento, o que, aliás, parecia uma mania tão comum quanto mascar chicletes. Num desses muitos enlaces, recorda Gustavo, a noiva subiu o altar sem sapatos, vestindo meias brancas, fazendo justiça ao estilão psicodélico da geração paz e amor. ‘Estranhei as meias, mas não falei nada’, relata, feito um garoto de colégio.
O sacerdote gaúcho deu a bênção nupcial a gente que faria fama na política, como José Richa, que se tornou governador do estado, e a Orlando Pessuti, atual vice-governador. Arlete Richa, 65 anos, viúva de José Richa e mãe de Beto, atual prefeito de Curitiba, lembra com detalhes do dia do matrimônio, em 1963, quando padre Gustavo profetizou, no sermão, o futuro do noivo. ‘Ele disse que o Richa seria governador e eu a primeira-dama. Achei meio pretensioso. A gente nem pensava nisso naquela época. Mas acabou se realizando’.
Apesar das ligações perigosas com a turma mais à esquerda, da pecha de pró-comunistas e de ter batido ponto até em Congresso da UNE (onde conheceu José Serra), Gustavo não se encaixava na categoria ‘padre de passeata’, expressão cunhada pelo implacável Nelson Rodrigues para definir o clero progressista. Teve sim lá os seus problemas de meter medo com o AI-5, chegando a ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Mas nunca precisou passar pelo constrangimento de depor.
Seu anjo da guarda era ninguém menos do que o arcebispo dom Manuel da Silveira d’Elboux, incentivador para que se mantivesse à frente de uma ação pastoral ainda um bocado avançada para a época. Afinal, ainda hoje, quem imaginaria um padre ou um pastor morando na CEU?
E aos seus anos dourados que o padre recorre para encontrar a expressão um dia usada para defini-lo, tamanha curiosidade sua figura provocava na cidade: ‘prafrentex’, palavra hoje tão estranha quando ‘patota, ‘jóia’ ou ‘supimpa’. ‘Eu tinha pouco mais de 40 anos e acabara de encontrar um mundo diferente. Meu lema era: para frente e para o alto’, repete pelo menos três vezes durante a entrevista, feito no apartamento em que mora, perto do Passeio Público e, como era de se imaginar, da Casa do Estudante. O chavão serve como resumo da ópera, afinal é assim que Gustavo se vê, um cara moderno, mas nem de esquerda, nem de direita. Pelo que tudo indica, os outros também.
‘Era considerado de esquerda’, afirma o jornalista João Féder, que várias vezes entrevistou padre Gustavo no tempo em que ele era assunto do dia. Segundo o próprio padre, Féder teria certa vez lhe perguntado de que lado estava. ‘Mas isso foi há 40 anos. Muito tempo. Lembro de pouca coisa’, diz o jornalista. Já Carlos Jung não concorda. ‘Quem disse que ele era de esquerda?’, pergunta o profissional da imprensa para quem, por conta das relações com políticos e com a nata da sociedade paranaense, o cura da CEU pertencia à ala conservadora. ‘Como todo mundo, eu queria reformas. E esperava qualquer coisa do governo militar. Preguei a Doutrina Social da Igreja, só isso’, avisa o religioso.
Pereira realmente conhecia as socialites dos anos 60, ou as ‘locomotivas’, como diz, das quais se aproximou para que se tornassem madrinhas dos moradores pobres da Casa do Estudante. Ele cita com estima dona Hermínia Lupion, histórica incentivadora da CEU, desde sua criação em 1956. A palavra de ordem, então, era dialogar com o mundo numa espécie de iê-iê-iê eclesiástico que incluía as tais ‘locomotivas’ e tudo mais. O padre lembra, por exemplo, de ter aberto a Casa para visitas das misses Brasil de 1966, Ana Cristina Ridzi, e 1967, Carmem Sílvia Ramasco. Os moradores, evidentemente, fizeram panelaço, apitaço e barricada, mas não para derrubar poder. A CEU de Gustavo não era só pedrada.
Do alto dos 95 anos, um lúcido padre Gustavo confessa que viveu. Viveu muitas vidas. A primeira como único filho homem de um ferroviário açoriano que queria porque queria ter um filho médico. Mesmo o garoto tendo avisado, aos 12 anos, que desejava ser padre. Em 1935, formou-se em Medicina, atuando como pediatra. Foram 12 anos de consultório, período em que viu morrer o pai e teve de assumir a educação de uma irmã temporã tarefa que abraçou antes de ingressar no claustro. Em 1947, começou a segunda jornada desse poema. Tornou-se jesuíta. ‘Não faltou quem me dissesse: Não faça isso!’. Não deu ouvidos.
Arrisca a ordenação ter sido mais noticiada na Porto Alegre de 1953 do que a indicação de João Goulart para o Ministério do Trabalho, a eleição de Jânio Quadros em São Paulo, ou, um ano depois, o quebra-quebra da diva Ava Gardner no Copacabana Palace. Os jornais da capital gaúcha adoraram a história curiosa do médico que virou padre. Mereceu manchete. Nascia o mito.
Na conversa com a reportagem, padre Gustavo deu pistas em prestações sobre as 101 referências que fizeram dele um homem de seu tempo. Quando decidiu abandonar a Medicina para ser jesuíta sentia fascínio pelas idéias de Teilhard de Chardin, teólogo e cientista visionário que deixou aos pulos o coração da geração 50 ao falar do Cristo Cósmico e da cristificação do universo. Isso bem no momento em que começava a se falar em corrida espacial e Darwin ainda não era bem recebido na sala de visitas.
Mas Teilhard não foi o único inspirador do ‘prafrentex’ Gustavo. Houve também os padres operários franceses, liderados por Jacques Loew a partir dos anos 40, encantando milhares de jovens ao trocarem batina por macacão sujo de graxa, infiltrando-se secretamente nas fábricas. Qualquer semelhante com o padre que foi viver no meio dos estudantes não é mera coincidência.
Se Teilhard e Loew deram uma forcinha, a descoberta do método Ver-Julgar-Agir foi o empurrão que faltava para abandonar de vez o estetoscópio. O método era utilizado nas comunidades eclesiais, feito a Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Estudantil Católica (JEC), que viria a se tornar o segundo endereço do padre Gustavo Pereira. ‘O Ver-Julgar-Agir me abriu os olhos’, elogia, sobre anos incríveis que levaram ao Concílio Vaticano II, a um vento fresco nas catedrais e à política. Nos saraus com os moradores da CEU, já padre, Gustavo ouvia falar mais de Marx do que dos ídolos da Jovem Guarda.
Esse roteiro só foi abalado quando a disposição do sacerdote em discutir luta de classes, propriedade privada e mais-valia esbarrou na moral católica. ‘Deram licença para mulheres dormirem na Casa do Estudante. Não aceitei e me retirei’, lembra o religioso, que iniciou um novo capítulo, o de capelão do Palácio Iguaçu e do Tribunal de Justiça, entre outros trabalhos que lhe garantiram a alcunha de ‘padre dos três poderes’. Os ex-inquilinos da CEU que aos poucos tinham atravessado a rua e se instalado no Palácio Iguaçu e na Câmara carregaram consigo o sujeito que era médico, padre e gostava de política. Não tem como esquecer um cara ‘prafrentex’.”
Por Des. Robson Marques Cury